Na pandemia de Covid-19, a rede social de apoio encontra-se ameaçada tanto pela possibilidade de perdas múltiplas em uma mesma família, como pela necessidade de reconfiguração da presença mediante ferramentas tecnológicas. Além disso, a impossibilidade de realizar rituais fúnebres devido a ausência do corpo exerce um dano considerável à saúde mental dos sujeitos que sofrem essas dolorosas perdas, tanto pelo fato de impactar crenças religiosas da família como pela dificuldade de ativação da rede de apoio nesse momento.
Franco (2002), Bowlby (1989) e Parkes (1998) destacam uma série de fatores que se entrelaçam no momento da morte, potencializando a possibilidade de sua complicação. O luto complicado é caracterizado por uma desorganização psicossocial prolongada que impede a pessoa de retomar suas atividades anteriores à perda, afetando consideravelmente sua qualidade de vida e suas perspectivas de si e do futuro (BRAZ E FRANCO, 2017). Além da dimensão do tempo, o que pode contribuir para a identificação do luto complicado é a intensidade das reações após a perda, colocando a vida do enlutado em risco de adoecimento.
O projeto Transcender nasce em atendimento a uma demanda verdadeira, face ao sofrimento inerente a um contexto permeado de perdas pelo qual passamos neste momento pandêmico, que gera uma “falta” de vivências e rituais de despedida.
Para a elaboração e execução do projeto, juntaram-se em colaboração: o LabArteMídia (Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias Digitais) – grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e do Programa de Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP; o InterPsi (Laboratório de Estudos Psicossociais: Crença, Subjetividade, Cultura & Saúde), grupo de pesquisa vinculado ao Instituto de Psicologia da USP; e o Laboratório de Robôs Sociáveis, vinculado à Escola Politécnica da USP. Os cientistas envolvidos no Transcender formam uma equipe transdisciplinar composta por cineastas, artistas, comunicólogos, engenheiros, cientistas da computação e psicólogos especialistas em rituais e estudos das religiões.
O projeto Transcender supõe uma plataforma de comunicação para dar suporte à realização de rituais de despedida e velórios a distância e para o registro de memoriais de entes queridos. Seu objetivo é apoiar pessoas impedidas de participar presencialmente de tais eventos, devido a barreiras físicas, condicionadas por distâncias ou problemas sanitários, proporcionando situações de telepresença e criando na experiência do luto a sensação de coletividade, uma vez que não poder se despedir do corpo de um ente querido prolonga o luto. Destina-se a familiares e amigos limitados pela barreira da distância e por doenças que os impedem de contato humano direto em rituais de despedida. É uma plataforma imersiva customizável, que lança mão de múltiplas realidades (virtual, aumentada e mista) que dão suporte a videochamadas.
Transcender, que tem como base tecnológica e comunicacional uma solução de vídeo imersivo ao vivo em plataforma colaborativa via streaming. O projeto não visa substituir rituais tradicionais de despedida, mas atender uma demanda específica do mundo diante da pandemia de Covid-19, que é vivenciar o ritual de luto e de despedida, por meio de uma tentativa de proporcionar conforto emocional às famílias e amigos que perderam entes queridos, ajudando-os no processo de elaboração do luto e na conservação de memórias.
Pretende-se não apenas possibilitar a transmissão remota de cerimônias de despedida, mas proporcionar ao público participante, radicado em diferentes localidades, uma experiência imersiva, através de vivências customizáveis, que admitam a inserção de fotografias, vídeos, músicas, textos escritos e falados e elementos simbólicos. Para isso, desenvolve-se uma plataforma que lança mão do uso de ferramentas amigáveis, dispostas em ambiente circular, e que, sobretudo, considera as diversidades culturais, locais e/ou religiosas dos rituais de despedida. Como parte da narrativa, serão oferecidos aos participantes elementos/símbolos para que possam enriquecer a construção da experiência e proporcionar a sensação de presença e pertencimento ao momento do ritual. A narrativa pode ser vivenciada de forma simultânea, sincronizada, por vários familiares e amigos. Assim, a experiência que será individual, pode ser também coletiva.